Da boleia para a telona do cinema

As caminhoneiras vêm ganhando espaço na mídia e no cinema. O dia a dia, dificuldades e conquistas da profissão são retratados nas mais diversas histórias. O último lançamento com uma personagem das estradas é o famoso Boi Neon (2016).

Protagonizado por Juliano Cazarré, a história acompanha os bastidores das vaquejadas no interior do Nordeste. Iremar (Cazarré) é um vaqueiro que prepara os bois durante o dia, mas à noite sonha com figurinos de lantejoulas e costura roupas para Galega (Maeve Jinkings), sua colega das vaquejadas, caminhoneira e mãe de Cacá (Alyne Santana).

Para criar a personagem, Maeve entrevistou Zucca Aguiar, uma das primeiras caminhoneiras da história do CEAGESP, e também homens caminhoneiros para analisar a visão sobre a profissão. “É muito interessante, porque além de certo preconceito, notei também a admiração que esses homens têm por elas (mulheres).”, afirma.

Protagonizado por Juliano Cazarré, a história acompanha os bastidores das vaquejadas no interior do Nordeste (foto: divulgação)
Protagonizado por Juliano Cazarré, a história acompanha os bastidores das vaquejadas (foto: divulgação)

A atriz ainda fez aulas de direção com um motorista que carrega bois para as vaquejadas. “Foi evidente a desconfiança inicial dele, e como ficou de queixo caído na primeira vez em que estacionei de ré o caminhão a fim de descarregar 25 bois. Até eu fazer isso, escutei muitas piadas e risinhos de grupos de homens presentes. Ao final de tudo, meu instrutor me parabenizou dizendo que eu levava jeito pra coisa (risos). A questão é que ele não esperava que uma mulher como eu pudesse executar essa função.”

O diretor Gabriel Mascaro também se aprofundou no mundo das estradas para entender a profissão e as mulheres que seguem na área. “Durante a pesquisa de roteiro entrei em contato com várias empresas de transporte de carga e várias delas relataram que existe uma orientação interna nas empresas para contratarem mulheres motoristas por elas serem mais responsáveis na direção. Entrevistei várias caminhoneiras antes de escrever o roteiro”, afirma.

Maeve Jinkings interpreta a personagem Galega, caminhoneira e mãe de Cacá (foto:divulgação)
Maeve Jinkings interpreta a personagem Galega, caminhoneira e mãe de Cacá  (foto:divulgação)

Em Boi Neon, como o próprio diretor afirma, há uma dilatação das representações do gênero, em que o personagem de Cazarré além de vaqueiro sonha em ser um estilista, enquanto a personagem de Maeve é uma caminhoneira, que além de dirigir, conserta o veículo. Tudo isso sem estereótipos e preconceitos que rodeiam a sociedade, como um homem afeminado ou uma mulher masculinizada.

Mulheres da vida real

Apesar do avanço e o número crescente de mulheres na profissão, o preconceito com a presença feminina ainda existe. Confundidas com prostitutas, auxiliares de caminhoneiro e até mesmo esposas, o “ser mulher caminhoneira” ainda soa como algo novo e até mesmo assustador para algumas pessoas.

“Quando digo que sou caminhoneira em um primeiro momento as pessoas não acreditam, principalmente quando vou a uma loja e preciso fazer algum cadastro e perguntam minha profissão. As pessoas costumam atrelar a figura do motorista de caminhão, ao homem, ao machão, então há esse espanto.”, afirma Solange Emmendorfer, caminhoneira da Braspress, empresa pioneira na contratação de mulheres. Hoje, a transportadora conta com 209 motoristas urbanas e oito de carretas (42% do total de motoristas da empresa). Os homens contabilizam 341.

Cássia Claro, motorista de caminhão, conta que já sofreu preconceito no início da carreira. “Como eu cheguei à empresa e comecei a dirigir carros de passeio, e dentro de seis meses já estava em um bitrem, isso causou muita inveja entre as pessoas que estavam há mais tempo na empresa”, declara. “Na carreta você tem que separá-la do cavalo e isso exige um pouco de força no braço. Os homens falavam que como eu queria ser carreteira igual a eles, deveria me virar sozinha e não receber ajuda deles”, acrescenta.

“Você não tem vergonha de estar tirando o trabalho de um pai de família?” Esse foi o comentário que Cathia Medeiros ouviu de uma pessoa próxima. “Infelizmente acontece, a minha resposta foi: Eu sou pai e mãe de família, então não tenho vergonha”, acrescenta. “Independentemente de ser mulher, eu sou capaz de fazer a mesma coisa que um homem.” Hoje, Cássia e Cathia são motoristas da Caravana Siga Bem, projeto itinerante que discute o assunto na estrada entre os caminhoneiros.

Mestre em psicologia, Lígia Baruch afirma que a mulher assumir o papel que até então era considerado “trabalho de homem” é um avanço para a igualdade de gêneros. “O domínio masculino tem muito mais poder, pois gera renda. Onde há dinheiro há poder. O trabalho de cuidar da casa e dos filhos apesar de muito importante, não gera renda e não cria independência. Mesmos as mulheres que trabalham e ganham mais do que o marido, em algumas situações tentam esconder ou minimizar seu poder com receio de ‘perder a relação’.”

Sobre o estereótipo da mulher masculinizada que ronda o imaginário das pessoas, Lígia afirma que é um reflexo da sociedade. “A nossa sociedade ainda é extremamente machista. O comportamento muda, mas as crenças não mudam na mesma velocidade. As crenças machistas partem de homens e mulheres mais tradicionalistas e são reforçados por discursos que naturalizam as diferenças. Coisas de homem e coisas de mulher. Diferenças existem entre homens e mulheres, mas elas são bem menores do que se alarma”, acrescenta.

Veja também: Conheça histórias de caminhoneiras da vida real

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