Os perigos, os percalços e os pedintes

Por Mauro Cassane
Editor do Portal

Saindo de Santo Tomé os caminhões levam apenas alguns minutos para chegar à Rota 14, pegar à esquerda, e seguir adiante “ao infinito e além”. A primeira placa indicando Buenos Aires aparece rapidamente, nos primeiros dois quilômetros percorridos, “Buenos Aires, 851 km”. O relógio marca 5h01. O velocímetro se mantém estável em 90 km por hora. Neste ritmo, matematicamente calculando-se, entre quatro e cinco da tarde os caminhões chegam ao destino.

Isso é só na teoria. Na prática a história é sempre bem adversa. Especialmente nas estradas, em particular na Rota 14. Para não criar mistérios, tão somente ao que diz respeito ao horário, vamos sair um pouco da narrativa linear, e para melhor ilustrar a aventura, antecipemos a informação de nossa chegada à capital portenha: o comboio entrou no autódromo argentino exatamente às 23h14. Mais de 18 horas depois de nossa partida.

O primeiro problema são os perigos. A maior parte do trajeto é feito em uma via de duas mãos. A estrada é estreita, com asfalto vincado pelos pneus dos pesados formando uma espécie de trilho. E o fluxo é intenso em tempo integral. O número de caminhões brasileiros impressiona. É possível distingui-los primeiramente pelo óbvio: a placa. Mas depois pelas condições: “os novos são nacionais, os mais velhos, argentinos”, diz Vignaldo Fizio, motorista do Stralis.

Ao se cruzarem os caminhões balançam. A gente se acostuma com o tempo, mas nas primeiras horas aquelas “finas” que um caminhão tira do outro, que vem em sentido contrário, são assustadoras. O tempo todo parece que vai haver um choque de retrovisores. Passam perto demais. E um descuido pode ser fatal. A estrada inteira é pontilhada por marcas de freadas e melancólicas evocações religiosas sinalizando que, naquele ponto, um estradeiro perdeu a vida.

No trajeto avistamos quatro acidentes feios. Caminhões que saíram da pista deram o famigerado “L” e ficaram ali, tortos, com a cabina espremida pelo peso da carreta. O comboio passa. Um atrás do outro. Raríssimas são as ultrapassagens. Altair Batista Félix, gerente da Fórmula Truck, irmão mais novo do falecido Aurélio Félix, o homem que criou toda esta história de corrida de caminhões no Brasil, mantém a calma e o comando de todo comboio. Zela pela segurança de sua equipe e está sempre atento a tudo.

Altair impõe o ritmo. Quer chegar no horário, mas não permite nenhuma imprudência. Segura os mais afoitos, acelera os mais atrasados e, quando necessário, pára o comboio todo para esperar alguém que ficou para trás por algum tipo de problema. Dificilmente perde a calma, Altair. Mas é respeitado, tem espírito de liderança e mantém a turma tranquila perguntando, a todo momento, nas paradas, para um ou outro, “está tudo bem?”.

Além dos perigos, há os percalços. Outro item que faz a matemática das horas se multiplicarem por dois ou três. O trajeto todo está em obras. O governo argentino empenha-se para duplicar esta importante rodovia. Há diversos trechos com desvios morosos, sem pavimento e esburacados. Nestes pontos a velocidade baixa para 10 km/h. E desvios assim são encontrados a cada 100 quilômetros.

Por fim, o tempo de viagem é dobrado por um outro problema, este de ordem moral, que certamente envergonha a nação argentina. Muitos policiais rodoviários, com seus jalecos amarelo vivo, uniforme impecável e limpo, barba feita, aspecto sadio, agem como pedintes de beira de estrada.

“Una plata para la cachaça”, diz um deles, postado no meio da estrada em desvio, estalando o dedo no universal sinal que indica “dinheiro”. Diz o mesmo para todos os caminhões que passam. Outros policiais apenas observam ao longe. Os caminhoneiros brasileiros sabem o que isto significa. Descem os vidros e já botam do lado de fora uma nota de dois reais ou, tão valioso quanto, um boné.

Ao longo do trajeto são seis os pedágios, e não são caros. Média de oito pesos, o que dá, pouco menos de quatro reais. Mas os pedintes uniformizados grassam entre um e outro pedágio. Por hábito, como regra, param sempre os caminhões com placas do Brasil. Como geralmente os caminhões que fazem estas rotas internacionais são novos, eles buscam algum “pêlo em ovo”. Andam com uma régua de aço de quase três metros e meio e, com ela, medem minuciosamente algumas carretas que, a olho nu, parecem exceder em alguns centímetros a legislação de altura permitida na Argentina.

Caminhão algum é retido. Eles retêm apenas alguns trocados. “Regalos” como dizem. Mas pode ser bonés, chocolates, cachaça, qualquer coisa. Estranhamente uma fauna imensa de caminhões argentinos, apelidados como “assombração” pelos motoristas brasileiros, circulam pela Rota 14 em condições tão precárias que, mesmo nos mais remotos rincões do Brasil seriam condenados por qualquer polícia rodoviária.

Estas “assombrações” têm características peculiares e nada seguras para qualquer lei de trânsito: andam sem os faróis, sem parachoque, sem o capô do motor, sem parabrisa, alguns, inclusive, assustadoramente, sem as portas. São sucatas móveis. A fumaça expelida é tamanha que vão deixando um rastro negro que sobe pelos ares.

E lá vão eles, passam incólumes pelos policiais argentinos faceiros e tranquilos, alguns até buzinam, cumprimentam, enquanto novíssimos extra-pesados com placas do Brasil são parados para dar “explicações” sobre a altura da carreta que, pela lei argentina, pode representar algum tipo de risco, mesmo não havendo nenhuma ponte sobre a Rota 14.


Foto: Mauro Cassane

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