Uma centopeia cruzando um campo de futebol

por Mauro Cassane,
Editor do Portal

O comboio saiu de Santo Tomé no escuro da noite e chegou a Buenos Aires também quase entrando pela madrugada. Foram mais de 18 horas de viagem para cobrir quase 900 quilômetros até a entrada do Autódromo Internacional da Argentina. Na estrada, os caminhões coloridos, decorados, muitos carregando os bólidos da Fórmula Truck na carreta prancha, chamam a atenção dos outros caminhoneiros e dos passantes.

Nas paradas nos postos, os caminhoneiros argentinos puxam prosa. Mais bonés da Fórmula Truck servem de moeda de troca para mais pacotes de maçãs e peras argentinas. São frutas saborosas e que mantém os caminhoneiros alertas e bem alimentados no trajeto. “São de carretera?”, perguntam sempre os argentinos. Ao que parece, mais do que futebol, os argentinos gostam mesmo é de esportes de automotor. De velocidade. Talvez influência antiga do velho e bom Fangio que trouxe aos avós desta turma alegrias nos primórdios da Fórmula 1.

Na estrada, a maioria dos veículos que rodam no sentido contrário, além de tirar fina dos caminhões do comboio por conta da estrada estreita, pisca o farol. Fazem questão de cumprimentar. Acenam com as mãos. Tiram fotos. Estradeiros do Brasil e da Argentina fazem o mesmo. O pessoal da Fórmula Truck retribui, muitos tocam a buzina, dão sinal de farol também. É o momento de um pouco de descontração e emoção.

A Rota 14 é formada por “retões” imensos: São centenas de quilômetros até o horizonte, e depois mais uma centena adiante, e vai assim… A estrada segue em linha reta e tediosa. As curvas, quando aparecem, são tão leves que pode-se dizer imperceptíveis. Não há qualquer aclive ou declive. Nada de morro. Embalados, todos andam na marcha mais leve. De ambos os lados da estrada o visual é o mesmo: extensos campos de pasto pontilhados por pântanos ou alagados.

Você dirige por horas, viaja quilômetros, e o visual para frente, para trás e para os lados, é o mesmo. Nunca muda. Pasto, estrada de mão dupla, reta sem fim, campos alagados, algumas parcas árvores, eucaliptos na maioria, vacas, alagados de novo. E por horas e horas, o mesmo. É como uma centopéia atravessando todo um campo de futebol.

Na monotonia desta tocada é que mora o perigo de uma súbita e minúscula desatenção. Deve-se admitir, o trajeto é perigosamente sonífero. São raros os trechos com acostamento. Normalmente o que se tem é uma extensão em grama margeando os dois lados da estrada. Ao menor descuido, o caminhão sai do vinco, e balança. É o alerta para o motorista recolocá-lo no trilho dos demais. Neste aspecto, o defeito da estrada acaba sendo providencial, útil e serve até para salvar vidas.

As horas passam. Na boléia, a conversa viaja pelos mais diversos assuntos. Lembranças de família, amores novos e antigos, recordações de infância, planos, sonhos. Depois, horas de silêncio. Depois, novos assuntos místicos. Há horas que é preciso conversar e, outras, se calar. Mas o rádio se mantém em tempo integral tocando alguma música. Os gostos variam no comboio. Há de tudo, sertanejo, pagode, samba, MPB, rock e até valsa. Nem todos contam com carona, mas 100% são embalados por música.

Vignaldo Fizio, o piloto Vig, esqueceu de pegar seu pacote de CDs. Tem apenas um com quase 200 músicas. Está há três dias ouvindo as mesmas canções. No trajeto, o CD do Vig vai do começo ao fim por cinco vezes. Ele já decorou a sequência das canções. Canta com o CD. Sabe de cor e salteado cada trecho que vai pular, pois o CD está riscado. “Mas por que você não pula estas músicas que estão com defeito?”, pergunto. “Porque até isto serve para me distrair um pouco”, me responde.

Foto: Mauro Cassane

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